Perdão

Publicado em 11/03/2024

Por Liz de Queiroz

 

Estava a ponto de ter sua bebê nos braços. Acabara de trocar de parteira, pois buscava conexão. Sempre valorizou as ligações humanas e queria proporcionar à primeira filha – seu segundo rebento – um nascimento envolto em conexão. Justo!

Emoção à flor da pele, como sói ser na etapa final da geração de vida, encontrou suas amigas na charmosa travessa do centro da cidade. Uma delas também levava outra vida em si; a outra tornava o caminhar com novas vidas mais leve e prazeroso. Tudo muito conectado. Clá – como era chamada de pequena – apreciava isso.

Com tempo de sobra antes do evento, foram ao supermercado. Clá sentia o rugir de leão dentro de si e precisava acalmá-lo. Uma bebida de chocolate, queijo e croissant. Conforto, energia, satisfação.

Sentaram-se as três na mesinha de ferro da saída. O contentamento estampado em Clá por terem achado o lugar ideal para o lanche: “Aqui está perfeito!”

Um gole doce e a garrafinha aberta em cima da mesa, sua bolsa, os alimentos que já lhe davam água na boca. Bolsinha arteira, voluntariosa, obstinada... que cai e derruba a garrafinha, jorrando leite com chocolate na barriga de meia gestação da amiga, nos sapatos, na jaqueta...

Por uns instantes o tempo parou. Olhavam-se as três em suspense sem saber como reagir, como lidar com aquela situação.

Até que a amiga vítima do repentino golpe cai na risada, dissipando um pouco a tensão daqueles segundos.

Corre a pegar papel, uma enxuga o vestido, outra os sapatos, a terceira a jaqueta. Entre desculpas e risadas e espantos, o vento leva o aroma achocolatado e o descrédito do acontecido.

Mudam-se para a mesa ao lado. Em poucos minutos, sem se darem conta, já há uma placa de “wet floor” no local afetado.

Mas Clá precisa de mais... Não se desconectou do incidente. Chuva, sol, tormenta. Sente-se desastrada. Lágrimas lhe vêm aos olhos. Acabou sendo a mais impactada na situação. “Não foi você”, dizem as amigas, mas ela se sente responsável.

Era fim de tarde, a noite apenas começando. Clá respira fundo, deixa a lágrima escorrer, passa a mão na barriga voluptuosa e aceita o que falam as amigas, tão cheias de vida como ela própria.

Pega um pedaço de queijo e croissant. E, perdoando-se, toma um gole resignado do que restou do achocolatado.

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