Não Tropece na Língua
Número: 260
Data: 16/11/2016
Título: NORMA CULTA E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA - III
Não é fácil estabelecer áreas de uso distintas para a norma culta e a norma-padrão porque muitas vezes as duas andam de mãos dadas. Por exemplo, na imprensa escrita se encontra simultaneamente o uso da norma canônica e das outras variedades linguísticas, embora o consenso seja de que os jornais e revistas de grande circulação são paradigmas da norma culta, pois produzidos por pessoas de escolarização completa, como os jornalistas, e circulam num estrato social urbano identificado como “culto”, de camadas da população que apresentam história de letramento familiar e amplo acesso aos bens de consumo, cultura e lazer.
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Falamos acima em variedades linguísticas. É inquestionável que as línguas variam, mudam, se expandem, morrem. As línguas comportam variações e mudanças no tempo, no espaço, na forma, no seu funcionamento. Encontram-se, portanto, variações geográficas (vocabulário e prosódia mudam de região para região); sociais (com as variáveis de classe, sexo, idade, grupo étnico, escolaridade e fatores individuais); de registro (formal e informal); estilísticas, semânticas, lexicais e fonológicas.
O problema do certo/errado (conceito embutido na dicotomia entre língua-padrão = correto, e não padrão = errado) parece residir na pouca compreensão de que a variação está inscrita na língua, é própria dela. Como lembra Marina Yaguello (2001), “nunca ninguém deteve a evolução de uma língua, a não ser deixando de falá-la”. Ensina a autora que a mudança linguística é movida por duas forças distintas: uma procede da língua mesma, é inerente à sua lógica interna; a outra procede da comunidade linguística, das condições sócio-históricas em que é produzida.
A própria norma prescritiva não se põe a salvo das mudanças: ela também se deixa influir pelos empréstimos estrangeiros, pelas inovações e flutuações de uso (o verbo obedecer, por exemplo, antigamente era transitivo direto, passou a indireto e está voltando aos tempos clássicos na forma de obedecer ordens, obedecer o papai).
“O fato de as línguas passarem por mudanças no tempo é algo que pode ser percebido de mais de uma forma. Uma delas é o contato com pessoas de outras faixas etárias. Quanto maior a diferença de idade, maior a probabilidade de encontrarmos diferenças na forma de falar de duas pessoas”, explica Paulo Chagas (In Fiorin. Introdução à lingüística. SP: Contexto, 2003).
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Em seu artigo “Norma-padrão brasileira” (2002), Carlos Alberto Faraco esclarece que a raiz do preconceito linguístico na cultura brasileira e das atitudes puristas e normativistas que veem erros em toda parte e condenam qualquer uso – mesmo aqueles amplamente correntes na norma culta e em textos de nossos autores mais importantes – de formas que fujam ao estipulado pelos compêndios gramaticais mais conservadores está na grande distância que se colocou, desde o início, entre a norma culta e o “padrão artificialmente forjado”.
É dentro dessa perspectiva da variação e evolução linguística – de regências verbais mutantes, ortografia e prosódia alteradas, novos significados a antigos vocábulos etc. – que Marcos Bagno diz ser preciso reconhecer que
tudo o que a Gramática Tradicional chama de “erro” é na verdade um “fenômeno” que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere da regra prescrita nas gramáticas normativas é porque há alguma regra nova sobrepondo-se à antiga. Assim, o problema está com a regra tradicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeitamente competentes de sua língua (Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. SP: Loyola, 2003).