Não Tropece na Língua

Número: 289
Data: 28/06/2017
Título: TER POR HAVER

 Em “No meio do caminho”, Carlos Drummond de Andrade usa várias vezes o verbo ter no lugar de haver, ou seja, tinha por havia. O poema termina assim:

Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
 
Na coluna Não Tropece na Língua 46 citei verso de Chico Buarque corroborando fato linguístico muito comum na língua portuguesa que é o uso do verbo ter de forma impessoal, com o sentido de existir. Impessoal quer dizer que não há um sujeito com que o verbo deva fazer a concordância; por isso ele permanece na forma neutra, que é a terceira pessoa do singular. 
 
Vejamos uma frase em que o verbo ter flexiona de acordo com seu sujeito (sublinhado): “Tinham alguns meninos chegado ao ponto de ônibus quando o acidente aconteceu”. Quem tinha chegado? A resposta será “alguns meninos”. No entanto, o verbo ficará no singular se “alguns meninos” não for o sujeito da oração, mas sim o objeto direto: “Tinha alguns meninos no ponto de ônibus quando o acidente aconteceu”. Aqui, não existe resposta para “quem tinha”, pois ninguém tinha feito nada. Não existe um sujeito. O verbo é portanto impessoal, não podendo ser flexionado. É por essa razão que não se usa o acento circunflexo no presente em condições de impessoalidade:
 
Tem mulheres que adoram “rodar a baiana”.
 
Tem vezes que só queremos é sair do país.
 
Na padaria do português sempre tem pães e doces feitos na hora.
 
Tem mais rapazes que moças na discoteca hoje.
 
É evidente que o tempo do verbo pode ir além do presente, e ele é usado inclusive em tempos compostos e locuções verbais:
 
Tem tido muitas brigas no condomínio.
 
Vai ter uma feijoada lá em casa no sábado.
 
Com certeza teve ocasiões em que os latinos se sentiram desanimados.
 
Tinha gente que apelava para o ridículo.
 
Estamos entendidos: tudo isso está certo, é válido, está muito bom. Porém... O “porém” da história é que nenhuma das frases acima citadas é de natureza formal. Ou é poesia, ou propaganda (em que se costuma privilegiar o coloquial) ou frase do dia a dia, incluindo transcrição de depoimento nos autos de um processo. Em linguagem mais cultivada, exigida nos meios acadêmicos ou oficiais, impõe-se o uso do verbo haver, e nos mesmos moldes, isto é, sem a flexão:
 
Sempre haverá os descontentes com o rumo dos acontecimentos.
 
Há ocasiões em que todos nos sentimos propensos ao desânimo.
 
Enfrentaremos com denodo todos os obstáculos que houver.